Recentemente, o filme ‘Marighella’, dirigido por Wagner Moura, foi exibido no assentamento do MST Jacy Rocha, no município de Prado, extremo sul da Bahia, para diversos movimentos sociais de luta por igualdade e justiça social com destaque para a participação da juventude e movimento estudantil na construção da atividade. A película, que se destacou no cinema nacional e internacional como uma produção digna de reverência, protagonizou um reencontro com os movimentos sociais depois de meses de isolamento por conta da Covid-19.
Esse momento, que contou com a participação de diversas personalidades de esquerda do Brasil e da Bahia, foi considerado um marco na resistência ao governo Bolsonaro. Pode-se dizer que a obra tem efeito de registro histórico do nosso tempo e anseios, além de reforçar o sentimento de pertencimento, patriotismo e identidade com a história da resistência popular no Brasil. O tema da ditadura é importante de ser lembrado e estudado, para interferir na memória coletiva e que se compreenda as nuances e se conscientize humanamente uma nação para ir contra as práticas de tortura, perseguição política, autoritarismo e golpe de estado.
No período do regime ditatorial, junto às produções artísticas, midiáticas e acadêmicas reivindicadas e construídas pela militância e movimentos sociais, estavam a União Nacional dos Estudantes (UNE), e o movimento estudantil. O esforço era para lembrar as violências exercidas comprovadamente pelos militares da época, promover justiça às vítimas e reverenciar aqueles e aquelas que tombaram resistindo. Em contraponto a isso, via-se os argumentos rasos e sem embasamento dos defensores da ditadura ao insistirem no apagamento ou, muitas vezes, na defesa de elementos que conflitam com os direitos humanos. O filme de Wagner Moura retrata esses conflitos!
É mais do que sabido que o processo vivido em 1964 se caracteriza como um golpe de estado exercido pelo poder das forças armadas com viés político e ideológico de extrema direita. Esses fatos precedem qualquer interpretação ou narrativa que possa existir, pois as evidências históricas frutos do trabalho árduo dos historiadores, existem e possuem respaldo no campo acadêmico das ciências humanas e sociais.
Além disso, podemos afirmar categoricamente a existência de abusos, violências e práticas de tortura por parte das forças armadas durante esse período, que são comprovadas a partir de registros dos mais diversos possíveis: fotografias, documentos oficiais e não oficiais e até mesmo os relatos dos envolvidos nos casos.
A luta armada e não armada, o movimento estudantil, o movimento negro, operário e as greves são exemplos das diversas vertentes de resistência popular, que conflitaram com o governo autoritário e precisam ser lembrados. E torna-se função dos defensores e defensoras dos direitos humanos, contribuir para que esses sejam lembrados não como rebeldes, mas como exemplos de cidadãos e cidadãs que lutaram pelos direitos básicos de sobrevivência, livre expressão política e são, portanto, símbolos da luta pela democracia e direitos humanos no Brasil.
Batalha pela memória
Ao longo da história há um esforço exacerbado da militância em lembrar do que aconteceu nos ‘anos de chumbo’, enquanto que para os militares interessava mais deixar cair em esquecimento. Houve, então, nas décadas de 60 e 70, o início do que chamamos de ‘batalha da memória’ por parte das vítimas, militantes e movimentos sociais da época em construir uma movimentação massiva de denúncia aos atos de tortura e violência por parte dos militares e pressionar os militares e o regime a cair em contradição. Naquele momento, houve uma adesão importante ao discurso contra o regime e a favor da exposição dos ‘porões da ditadura’, que impediu os grupos militares de seguirem a estratégia de reforçar a Lei da Anistia como um momento de ‘zerar o jogo’ e não falar mais sobre o assunto, colocando assim eles na posição de disputas de narrativas.
Após o final do regime, o movimento de denúncia e exposição dos fatos foi paulatinamente sendo acrescentado por uma série de reivindicações por justiça e reparação histórica. A ‘batalha pela memória’ seguiu firme e forte sendo protagonizada pelos movimentos sociais e pelas vítimas e família das vítimas e apoiada por intelectuais, artistas e humanistas. Nesse contexto, o golpe e o regime militar se transformam também em objeto de estudo para os intelectuais das Ciências Humanas.
O movimento artístico e cultural de resistência ao regime e de luta pela memória de suas barbáries é extremamente relevante. Um exemplo disso foi o movimento cultural que surgiu em 1967 e foi amplamente conhecido como ‘Tropicalismo’. Composto por diversos cantores, poetas, compositores e artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa, o movimento protagonizou uma revolução musical denunciando o autoritarismo do regime militar. Além disso, um destaque do legado artístico é a ampla produção cinematográfica que faz referência às vítimas da ditadura militar.
O longa-metragem dirigido por Wagner Moura aparece na cena brasileira como um excelente exemplo da utilização do cinema como instrumento da luta popular e de denúncia ao autoritarismo. Afinal, lançado em pleno governo Bolsonaro, torna-se impossível não relacionar a luta de Carlos Marighella aos atos de resistência presentes nos dias atuais.
Para compreender as nuances da disputa pela memória em qualquer que seja o contexto, é fundamental reconhecermos o aspecto social e coletivo da memória e sua importância enquanto elemento de disputa na formação da identidade nacional e pertencimento. Com isso, em 1995 o governo federal assumiu a responsabilidade pela morte dos desaparecidos políticos e garantiu às famílias o direito ao óbito do familiar e posterior indenização. E a luta pela abertura dos arquivos tomou espaço na disputa social, enquanto que há uma dificuldade dos militares e até mesmo do governo brasileiro em reconhecer a ditadura como uma ‘cicatriz aberta’.
Luta pela democracia
Ao completar 40 anos do golpe, em 2004, esse debate se torna cada vez mais presente e constante. É importante considerar que, nesse período, o Brasil havia acabado de eleger um presidente que lutou diretamente contra o regime e posteriormente elegeu também a primeira mulher presidente (Dilma Rousseff), que foi torturada e sofreu graves violências na ditadura por ter participado dos grupos de resistência. Esses elementos reafirmam a efervescência e pressão social em se constituir a Comissão da Verdade para que os culpados fossem julgados. A disputa de memórias acerca do golpe de 1964 e os acontecimentos da ditadura militar é um processo presente no debate acadêmico e na sociedade de modo geral. As diferentes narrativas apresentadas pelos grupos conflitantes de militantes e militares desde o golpe, até os dias atuais, apresentam o tema da tortura e da resistência como passíveis de diferentes interpretações.
É evidente que as narrativas mais diversas continuaram sendo utilizadas até os dias atuais, o negacionismo de Bolsonaro, a exaltação a torturadores na Câmara de Deputados no impeachment da presidenta Dilma e a constante tentativa do atual governo federal em ferir os direitos humanos, são exemplos disso. Porém, nesse momento da história, há uma hegemonia na interpretação de que a justiça precisava ser feita e, por isso, diversos foram os avanços no sentido de reconstituir e obter verdade sobre os acontecimentos, acessar os arquivos engavetados, responsabilizar os criminosos e homenagear as vítimas e os símbolos de resistência. Os movimentos sociais têm a responsabilidade de reforçar esse processo.
Atualmente, há de se reconhecer a importância de reforçar a luta pela democracia, pelo direito à vida e à livre expressão e, para isso, reverenciar aqueles que tombaram na luta em resistência ao regime é fundamental. As reivindicações dos movimentos sociais atuais são continuidade ao legado de Marighella. A luta pela reforma agrária, por uma educação pública inclusiva de qualidade, contra o genocídio do povo negro, a violência contra a mulher e a LGBTQIA+fobia só existem e se reverberam por conta dos que lutaram antes de nós.
A exibição do longa ‘Marighella’, no assentamento Jacy Rocha do MST, foi um marco na luta pela memória e reverência aos verdadeiros heróis brasileiros. Em Prado, fizemos história contando o que a história não conta e depositamos esperança naqueles e naquelas que sofrem, há 3 anos, com o governo Bolsonaro. Nesse contexto, cabe a nós, movimentos sociais e em especial os de juventude, a árdua tarefa de contribuir para a derrubada dos muros do esquecimento, gastando nossas vozes com o compromisso coletivo da luta e do sonho que se sonha junto: ‘Tortura nunca mais! Marighella Presente! Fora Bolsonaro Genocida e Lula Presidente em 2022!’.
*Rafaella Rios é estudante de história da Ufba, Diretora da UNE e militante do Coletivo Quilombo.
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